Dia dos Pais

domingo, 12 de agosto de 2007

Sei que eu deveria escrever um belo texto sobre o dia dos pais, quem sabe uma homenagem ao meu pai ou algo assim. Mas não posso. Só o que posso fazer é falar a verdade, escrever sobre o que conheço e o que sinto. (texto grande, não espero que todos leiam...)

E a verdade é que eu e meu pai sempre tivemos um relacionamento complicado. Como filha mais velha e mais precocemente ciente do que acontecia ao meu redor, não me recordo de ter vivido aquela fase em que nosso pai é nosso herói. O que ficou gravado em minhas memórias era o quanto ele estava ausente na maioria dos momentos em que precisei dele.
Todos meus defeitos ou problemas eram motivo de crítica severa; minhas qualidades e esforços, por sua vez, não eram recompensados na medida que eu julgava que deveriam ser. Exemplo das duas situações: quando nova eu era bastante tímida, muitas vezes me sentia melhor na presença de pessoas mais velhas do que correndo com crianças desconhecidas, filhos dos amigos deles. Ele ralhava: " você é anti-social, isso é culpa desses complexos que você tem; culpa da sua mãe, tá igual a ela!". Por outro lado, eu tinha facilidade no aprendizado na escola, sempre tirava notas boas. Ele gostava de falar sobre o quanto a filha era inteligente... Estudei em escola particular no 1º grau, pois na época, minha mãe era funcionária da extinta Rede Ferroviária Federal, que custeava parte dos estudos. Mas ao chegar no 2º grau, o benefício acabava. Meu pai me disse que eu deveria passar na prova para escola pública ou ficaria sem estudar porque ele não pagaria. Fiz, contra vontade, prova para o que, na época, se chamava "normal" (que eu não queria cursar de jeito nenhum) e passei. Mas estava decidida a não cursar, por isso, minha outra opção (na minha cabeça, a única) era a Escola Técnica Federal. Graças a Deus passei muito bem colocada e pude me formar técnica em química. Fim do 2º grau, sonhava em fazer faculdade. Novamente ouvi: "só se for pública". Meu avô materno pagou a inscrição no vestibular da faculdade que cursei: Universidade Estadual da minha cidade, onde me graduei em ciências biológicas (o que me manteve, na época da faculdade, foi a bolsa de iniciação científica). Havia passado na UERJ também (enfermagem), mas não tinha como me manter no Rio de Janeiro. Queria tentar o vestibular da faculdade de medicina da minha cidade, mas desisti porque sabia que meu pai não pagaria mesmo... Eu não teria, evidentemente, sido, por muitos anos, tão revoltada se soubesse que meu pai não tinha condições financeiras para pagar minha faculdade ou me dar ajuda para estudar no Rio. O problema é que, naquela época, ele ganhava o suficiente para isso, entretanto tinha outras prioridades como gastar em noitadas (pagando também pros "amigos"). Ele dava extremo valor a que sempre tívessemos comida em quantidade e qualidade, isso nunca faltou em casa (ainda que a casa estivesse prestes a desabar sobre nossas cabeças). Estranho que nunca tenha percebido que os filhos precisam também de atenção, presença, elogios quando se esforçam, roupas, medicamentos quando adoecem, educação de qualidade para estarem aptos à concorrência por vagas no mercado de trabalho, etc.
Eu era a filha "revoltada", como ele me chamava. Não porque tenha me desviado, nem usava drogas, nem roubava, nem nada do tipo. Ao contrário: diria até que fiquei responsável demais antes do tempo. Ele dizia apenas porque era a única das filhas que "batia de frente" com ele, que não aceitava as atitudes dele e deixava isso bem claro através de palavras (que viravam discussões, muitas vezes apartadas por mamãe) ou deixando de falar com ele ou tomando algumas atitudes como ficar um ano sem entrar no carro dele por ter me recusado carona num dia que perdi a hora da escola (eu nunca pedia, esse dia foi exceção. Arrependido, depois que saí de casa, ele foi com o carro atrás de mim. E eu, a "revoltada", recusei-me a entrar e ainda disse que não colocaria os pés no carro nunca mais - detalhe: era dia de prova e eu só não perdi porque fui de bicicleta com um colega!).

Anos atrás, quando ele e mamãe deixaram de morar juntos, foi um alívio para mim. Já não tínhamos que ouvir críticas o tempo todo (especialmente mamãe), nem vê-lo chegando bêbado às 3 da madrugada, nem ter que presenciar as discussões... Mas ele ficou cada vez mais distante, pouco nos víamos, pouco nos falávamos... Ele reclamava com mamãe que eu não o procurava; eu respondia que ele também não me procurava e que além disso "cada um colhe o que planta" e era esse o tipo de relacionamento que ele tinha plantado.

Diabético a no mínimo 10 anos, nunca se cuidou. Continuou levando a vida de antes, de excessos, comendo e bebendo o que queria, sem se cuidar. Aniversário, dia dos pais, natal, ano novo e qd nos víamos, eu e minhas irmãs alertávamos. Mas acho que ele nunca pensou que poderia acontecer com ele. Adoecia, não se cuidava, só ia ao médico quando a situação agravava. Um dia, eu mesma o levei ao médico e o médico disse "se você não seguir a medicação, a dieta e não parar de beber, não precisa voltar. Não quero vê-lo morrer". 3 meses, foi o tempo que ele seguiu as recomendações médicas. Depois, vida normal.
Até ano passado, quando tudo mudou. Embarquei em fevereiro, ele estava com febre e na véspera do embarque tentamos (eu, mamãe e irmãos) levá-lo ao médico. Ele se recusou. 2 ou 3 dias depois, na plataforma, ao ligar pra casa, soube que ele estava internado: 2 dedos do pé direito amputados. Quis desembarcar, mamãe pediu que não, pois precisaria que eu ficasse com ele durante minhas folgas. Foi um embarque horrível, eu chorava muito, sabia que mamãe escondia algo; ela só dizia que eu não poderia fazer nada naquele momento, que deveria continuar embarcada pra ter as folgas e ajudá-lo nesse período. Quando desembarquei é que minha irmã me contou que os demais dedos do pé direito também tiveram que ser amputados. Chorei tudo que eu achava que podia, não queria chorar no hospital. Depois descobri que as lágrimas não tinham acabado.
Seguiram meses até que ele se recuperasse. Limitado pela doença, ele tinha mesmo que contar conosco, com mamãe e com os filhos - e foi assim que nos reaproximamos. No segundo semestre do ano passado, a visão começou a declinar. Viagens ao Rio de Janeiro para tratamentos com laser, injeções, colírios, culminando numa cirurgia para pôr uma válvula no olho - nenhum tratamento era eficiente para controlar o glaucoma causado pela diabete. Ainda assim, a visão não melhorou... Apenas não piorou, pois havia risco de ficar irrecuperavelmente cego.
Início deste ano, nova cirurgia, graças a Deus menos invasiva. Diagnóstico de que será preciso colocar válvula no outro olho.
Ele vai ao médico, toma os medicamentos, tenta fazer dieta (reclamando muuuuito)... Mas não consegue parar de beber. Como filha "rebelde", fui a primeira, há muitos anos atrás (ainda adolescente), a dizer a ele que tinha problemas com a bebida. Ele não admitiu, brigamos e ficamos meses sem nos falar. No fim do ano passado, mesmo depois de tudo que tinha acontecido, nós o flagramos bebendo no bar perto da casa onde morava. Reunimos toda família, conversamos com ele, lembramos todo sofrimento que ele passou e que nós passamos juntos. Ele zangou, disse que nós estávamos querendo privá-lo de tudo. No Natal, todos reunidos, falamos de novo no assunto e ele disse que não faria mais.

Qd voltamos pra casa semi-reformada, ele foi morar na casa que estávamos alugando, pertinho da gente. Liguei pra casa dele ontem, ninguém atendeu. Então falei com minha irmã. Estava zangada com ele porque duas semanas atrás ele estava no bar, perto da "nova" casa, bebendo; mas ela disse que ia falar com ele hoje, já que é dia dos pais.
Liguei hoje de novo. Mais uma vez, ele não estava em casa. Telefonei pra casa de mamãe, meu irmão atendeu. Triste, até chorou (coisa rara de acontecer). Disse que papai foi com algum colega pra praia. Meu coração doeu. Liguei pro celular de papai. Sim, ele tinha bebido. "Duas cervejinhas", é o que ele sempre diz. Saiu porque minhas irmãs não estão falando direito com ele nos últimos dias, chateadas - com razão! - pelo evento de quase duas semanas atrás. Nem esperou que elas fossem hoje na casa dele. Tento conversar com ele, conversa difícil, não tenho nem forças pra falar como antes - como a "filha revoltada", conforme ele dizia. Na minha voz, apenas tristeza. Peço que volte pra casa e ligue pro meu irmão para tranquilizá-lo. Ele reclama que está sendo desprezado pelas minhas irmãs, eu esclareço que é só uma forma de defesa porque ninguém mais aguenta ver ele destruindo a precária saúde que lhe resta. Ele diz que isso não ajuda, só faz com que ele fique pior. E eu pergunto: "O que ajuda? Já conversamos, fizemos o que podia ser feito. Não sei mais... Mas acho que só o que pode ajudar é o senhor admitir que tem um problema e que precisa mesmo de ajuda!". A verdade é, apesar dos pesares, ele nunca admitiu.

E tudo que eu queria era telefonar, falar com ele ouvindo a voz de meus irmãos ao fundo entre risadas, saber que está tudo bem e só desejar "feliz dia dos pais"...

A vocês, que são pais: sejam o melhor que puderem. A vocês, que são filhos: valorizem se tem um pai que, ainda que não seja perfeito (porque é humano), está sempre tentando fazer o melhor. A vocês, cujo pai está em outro plano: não se sintam tristes, agradeçam o tempo que o tiveram por perto fisicamente e saibam que seus pensamentos e sentimentos chegarão onde quer que ele esteja. A vocês, cujo pai é ausente: tentem cultivar o perdão (não é nada fácil, mas também não é impossível).

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